deslize entre o doce e o amargo






daniela ovtcharov






*

assim me sou raínha
abelha-mestra
ou zangão

num diafragma omisso

onde o ferrão se abriga
em rebeldia

.assim
ave rapace

em voo maior
desfaço
quando entranço no poema

o delírio
agri-doce

de um a-braço

.e assim
Poeta arrebatado

devolvo à palavra
à ave
ao vento
à água
à fonte

o silêncio con.vertido

em alforria





uma página em branco






don seegmiller






.
.

meu amigo
quero-o gravado numa epístola de pedra .espero os rios que descem de manso .ouso imaginá-lo de olhos pousados num jornal aberto sobre o nada .é por isso que tento vê-lo no rasgo da luz que atravessa as paredes
...
restos que inteiram os espaços tecidos pelo logro
...
interrompo
...
lembra-se quando pintávamos e derramávamos gargalhadas sobre os dedos? tecia-nos a desfaçatez deixando sobre o tempo a cupidez do breve
lembra-se quando era possível vaguear em rodopio ou
quando para o irritar me quedava no leito do esquecimento?
...
volto a página





mundo de conflitos






don seegmiller






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lembro-me de ter estado a re.ver velhos álbuns .lembro-me de rasgar fotografias como se ao fazê-lo me desfizesse de recordações
im.possível
os pensamentos não se apagam com a facilidade com que se rasga o papel .serpenteiam sem que tenhamos a capacidade de os reter

sou demasiado pequena para tantas recordações

lembro-me .lembro-me de pegar na fotografia de uma menina colhendo nêsperas sem reparar que esse gesto já se adivinhava .era diferente a sinfonia que lhe cobria os sentidos .imaginava-a a sorrir e insistia em olhá-la de frente .em reter todos os pormenores da sua face .em esculpir os seus gestos e eu teimando em perceber que o a.braço da menina e da árvore era o único acorde de um mundo de conflitos
uma menina parada no tempo .o tempo de uma fotografia .um braço escondendo três nêsperas numa mão retida nas minhas conspirações .teço-a drapeada em verso branco .tento reconstitui-la

sou demasiado pequena para tantas recordações

envolvo-me num labirinto di.minuto





a ternura das mãos






don seegmiller






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dentro do meu peito extinguiram-se as árvores os jardins a terra molhada .extinguiu-se a praia .o caminho vazio e tudo o que amei .tive quase-tudo-ou-talvez-nada mas tive a praia aquela-praia que um dia vendi ao des.barato e

segui em frente deixando as ervas que ia deitando ao poço

havia um poço na minha praia à volta do qual as mulheres dançavam descalças e onde a verdade se guardava no balde que dele içavam .às vezes colhia-me uma congelada merencoria 
era essa a minha praia
in.diferente
como me era in.diferente ser um animal-risível .os pássaros passaram e com eles a sabedoria-a-serenidade-o-pensamento .nunca pretendi resistir-lhes
limito-me a dizer presente à ternura de outras mãos





porquê?






don seegmiller






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insisto - meu amigo - em submetê-lo à obstinação das dúvidas que me perseguem quanto ao acto-criativo .mas se acredito que criar é tão natural quanto o comer

..............................

porque me sinto presa às urdiduras da linguagem literária?
              me invento em sobressaltos?
              me submeto ao peso do in.verosímil e fujo qual centopeia à cópia redutora do quotidiano?
              poetizo e invento o real?
              prefiro o marginal ao Ente-instantâneo?
              não gosto de des.enlaces felizes ?
              me in.compatibilizo com a arqueologia do Ser-em?
              suspendo a-dor-a-alegria-ou-os-sentimentos-banais que se alojam num falso-epicentro?
             me agarro à verdade e com ela moldo o barro da invenção?
             me infiltro em mil personagens?
             cedo aos segredos-miméticos?
             odeio o cinzentismo?
             me tenho entre os meus pares alojando-os fora do alcance de um comum-mortal?
            me detenho em janela-alheia?

..............................

meu amigo
porque somos dois sobreviventes no sub.terrrâneo da imaginação
aguardo a sua resposta na urgência do breve





memórias-erráticas






don seegmiller






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acordo o cérebro .sem ousar quebrar o ritmo deixo-o deslizar ao encontro das palavras que se vão juntando .trazem mantos-verdes-amarelos-pretos-e-brancos com que se re.vestem .são auroras .crepúsculos que não ousam .não se questionam quedadas no murmúrio da dúvida e vergam-se (in)submissas ao arrepio da forma .navegantes de indícios recusam o entendimento e arredadas da voz sentam-se na relva esquecidas do seu lugar na frase .esta ousa recorrer  ao primado da razão .demanda o elixir da vida certa de que a morte espreita o secretismo das palavras.  revolta-se contra o campo de papoilas que a espera fora de con.texto .é o domínio do in.dizível .do nonsense .do livre arbítrio onde tudo é permitido até o desabar do sentido .tento re.tomar o gozo .acciono o cérebro .não responde .dos passos iniciais  restam os campos e os mantos
subsidiários-menores-do-ritual-sagrado





os dias iguais






don seegmiller






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não sei porque deixo cabelos-brancos nos meus textos .sinto-me nave-pedra-cimento e um tudo nada cansada do cansaço .sei que amanhã e depois e ainda depois sentar-me-ei numa mesa de café acenderei um cigarro e não fumarei .pedirei uma bica que não beberei .repetir à exaustão o já dito lembra-me que sou uma pedra vulgar .tão vulgar que o seu manuseio fica muito aquém do uso a que me obrigam .mas como pedra sei que o meu lugar é a casa onde me quedo entre a falta e a certeza-do-não .é necessário que o meu cérebro me acompanhe .que se recuse a consentir as velas da lisonja .não é fácil navegar as recordações ou deixá-las num espaço onde estão menos sós .ninguém se apercebe que não conheço ninguém e quero-me pedra .quero-me prosa sem nunca renunciar ao poema
quero-me ausente do cinzento dos dias iguais





viagem em contra-mão






consuelo arantes






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às vezes
              quando o meu corpo se enrosca no velho caramanchão sinto o deslizar do sangue-água no bailado das borboletas
às vezes
              deixo-me empurrar pelo vento e nesse rescaldo de Ser consinto que as palavras me açoitem
às vezes
              um ninho de víboras espreita-me no lugar-sagrado e eu digo que não sei porque canto a fonte
às vezes
              as minhas mãos exibem tatuagens enquanto cansada de resistir me consagro à epifania da deusa
às vezes
              entregue à delinquência deixo-me aquietar na morrinha dum dolce fare niente
às vezes
              quero-me entre um staccato ou um vibratto na volúpia de ser um compasso de espera
outras vezes
                     dirijo-me em direcção à distância
efabulando alienações com um copo de água na mão






o prémio






consuelo arantes






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apago a luz e vejo como a tua figura incandesce ao mesmo tempo que o teu nome se estende nas sílabas perpendiculares .as letras com que te inscrevo arrastam-se em frases e rolam como um flúmen .conquistas-me na heroicidade com que te despes sem pedir qualquer re.conhecimento .o teu gesto perde-se na vulgaridade e a luz-iniciática encarregar-se-á de mostrar que os discursos nada têm a ver com a ciência-errática com que dissimulas o saber .abres-te e fechas-te .esqueces que tudo nos é emprestado e que só cresce quando o alimentamos .estendido no limite fronteiro ao quarto e resguardado pelos préstimos-nocturnos metamorfoseias-te em árvore .estendes os ramos ao encontro da seiva que escorre sem esquecer a promessa in.adiável e que não se cumpriu .desfazem-se os mitos no primado de um juízo e tu vacilas .fraseado .os actores atropelam-se e no cansaço de um orgulho conjugado na primeira pessoa des.fazes o deliberado porque o dia é demasiado evidente para ti-ancião-das-almas

Longe,
pede perdão ,comovidamente ,sôfrego e perdido,
sobre o teu corpo como um rio fechado*

a chama apaga-se .o aprendiz sabe que não sabe e remete-se ao esquecimento das letras assumidas na horizontal .é esse o seu prémio





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*Manuel Gusmão





universo de in.certezas






consuelo arantes






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os meus textos escondem-se atrás da escrita que se rasga rasga e rasga .é assim que os quero .soltos e diferentes porque o universo das in.certezas é a minha história .a minha história insere-se sempre em demanda do novo .a minha história não tem história .é um mar de nudezes à espera de uma mão que o invada .um turbilhão .ondas que se aquietam com medo da invasão .um nome que cai e se levanta .guiam-na sons lavados .a minha história é uma figura álacre que se esvai .é um dia a dia .um corre-corre por bóias num tropel ora apaixonado ora louco e que adormece quando a garganta não ousa .a minha história
é um parêntese onde a cidade se precipita





a dança da escrita






consuelo arantes






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adormeço sobre a mesa onde as palavras se iniciam .volteiam entre si .coisa estranha! fazem-no por razões alheias a qualquer comando .uma a uma põem-se a escrever para ti que as esgrimes que as olhas de soslaio sem saberes se delas nasces a partir do momento em que nelas pousas os olhos ou inclinas a cabeça .e teces com cada qual uma teia de cumplicidades que se vão cumprindo

-quando escreves? como escreves? para quem escreves se eu palavra não te abri a porta nem te premeditei como sílaba?

adormeces sobre a mesa onde as palavras rolam porque estás condenado a morrer nesta página

-inventa-me meu amor .inventa-me nessa dor-física que sabe a alegria .inventa-me para que me possas ter no lado visível das coisas .as que se lêem
-inventa-me meu amor .inventa-me tu .o autor .o apagador .o escritor .o irreverente-inventor-do-logro
-por favor RE.inventa-me


e  persegue-me em páginas e páginas sem medo de nos perdermos





o livro de horas






consuelo arantes






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a minha Mãe





minha mãe ousou o gáudio quando se encostou ao mar num misto de culto e regozijo
                     quedou-se à beira do poço onde os raios do sol doiram a alegria
                     vestiu-se de a-mar e deixou o olhar-vaidoso como se a palavra-timbre lhe despisse os braços de a-braços longos
                    quebrou o gelo e apagou todas as passagens que o a.deus lhe reservou e re.escreveu o livro das horas para me oferecer no dia dos meus anos porque minha mãe e eu todos os dias fazemos anos e penduramo-los nos sorrisos que regressam a casa
                    enfeitou-se de bem querer e esvaziando-se das coisas in.certas pousou a sua mão no meu rosto
o rio-do-seu-ousar não se cansa de correr






cabelos-brancos






consuelo arantes






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não percebo a equidistância entre um sapato deixado sob a cama e o seu par pendurado atrás da porta .é dia de pintar o cabelo .de fazer a risca do lado esquerdo como única maneira de esconder os brancos .mas que afinidade há entre os sapatos assimétricos e os cabelos simetrica.mente dispostos? o princípio e o fim ou a personagem que re.invento e que não se cansa de me namorar enquanto o meu corpo zig-zagueia através de conjunções onde vou perdendo a noção dos sapatos e dos cabelos-brancos? sob a esquadria de um deus que me aguarda fora de portas ainda
há tempo para namorar o Verão





aceno aos deuses o fogo das coisas banais






consuelo arantes






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"não tenho ambições nem desejos.
ser poeta não é uma ambição minha.
é a minha maneira de estar sozinho".*



ouço o balançar das coisas simples .ouço-as muito aquém do ritmo da chuva que vai enchendo a minha cabeça como se de um balão se tratasse .mas não .a chuva deixa-me lembranças de outros Invernos quando o ritmo das coisas causava lastros na pele dos caminhos .éramos simples peregrinos voláteis-corpos que se deixavam embalar e à revelia de um Fernando Pessoa redigíamos ridículas cartas de amor .no fogo das coisas-simples teimávamos em eternizar o ridículo em palavras que o tempo acabaria por re.vestir de banais .e devagar muito devagar fomos aprendendo a pendurar em cada árvore-ou-rua um vaga-lume
apóstrofe de um frio babado pelas paredes






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*Alberto Caeiro - O Guardador de Rebanhos -I.





procuro corpos palpáveis






consuelo arantes






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às vezes meu amigo tenho uma enorme dificuldade em concentrar-me .outras deixo-me prender ao significado de um termo como representação de um arquétipo .assaltam-me visões absurdas de pássaros transformados em árvores e estas em seres alados cujos frutos são o acasalamento dos ramos//asas .oscilo entre a loucura e a sanidade fazendo daquela o baluarte da urgência .é preciso acrescer algo ao não dito transformá-lo num ponto de comunicação porque é nela que o mundo cabe .ou será que o escondo na palma da minha mão? ainda meu amigo espero-o à sombra do velho caramanchão onde a sombra nos acolherá para um resguardo de presenças .sim .em todos os meus textos haverá sempre um velho caramanchão uma praia e um poço onde as mulheres se resguardam .é então que me deito dentro do pecado e no descanso reconheço a urgência do amor
a tarde veste-se de balões amarelos





as malhas que o cérebro tece






consuelo arantes






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apeteceu-me criar um conflito imaginário entre duas maçãs .uma a.dentrei-a num verso .a outra coloquei-a fora .claro que esta deslocação espacial acabou por provocar um ataque de fúria na segunda que  achou que o seu lugar também deveria ser entre .as vozes altercaram-se de tal modo que pensei em suprimir as maçãs .mas quando o dedo indicador da mão direita avançou para a tecla delete a esquerda segurou-o e no meu cérebro as ideias re.estruturaram-se  .de costas às intempéries engendrei um outro texto com duas maçãs redondas que aos poucos se  transformaram em crianças .parei no momento em que a transformação se iniciou porque os miúdos frente às maçãs hesitaram entre brincar e comê-las .o instinto da subsistência prevaleceu e entre eles-as-maçãs-e-a-sua-degustação não houve inter-acção possível .a pequenada que se aprontou à dentada foi remetida a um inglório rodapé e as duas maçãs dirigiram-se em bicos de pés à fruteira  .helas
assim se desteceram as malhas que um ( insano ) cérebro teceu





um certo modo de me haver entre infinitos






consuelo arantes






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vagueio o olhar em busca de não sei o quê e sento-me no sofá .estendo o braço e coloco a minha dormência na gaveta do pc .converto-me num acorde do Rigoletto de Verdi e deixo escorrer a música antes de convocar a distracção para o concerto "The Best of Opera" .faço-o certa de que a música também se pode converter num modo-assim .elevo e baixo o som - la donna è mobile - tentando ocupar a tarde .apesar de ser domingo decido não ir à missa porque a música não obedece aos cânones-eclesiásticos do mesmo modo que a partir de agora as árvores em vez de frutos passarão a dar pássaros e eu sob os auspícios de Maria Gabriela Llansol  que adormece sobre os meus joelhos acabo por atiçar os cães às pernas de deus .grave o estado da minha sanidade-mental - dirão - enquanto impávida-serena-e na-dulcíssima-companhia de Verdi
buscarei o pomar da minha infância





a arte de aprender a tratá-lo como igual*






consuelo arantes






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-ao meu Pai*





consigo assimilei o desafio das palavras admitindo-as como fugazes ambíguas e capciosas .consigo aprendi a não dar importância à invídia dos companheiros de ofício e a desafiá-los em praça pública com o intuito de aferir a beleza da oratória .foi o Pai que me ensinou a não mitificar os acomodados a desmentir a crença e a nunca ser servil .consigo iludi os milhafres .afastei-os da fruta que guardava para os amigos .a derrota jamais foi o seu lema e do particular sempre procurou o conjunto em gestos generosos e distraídos .a sua distracção vestia-se de presenças e sem frustrar o observador ampliava o seu raio fazendo jus à minha imaginação de menina .da arte em construção levou-me quando jovem-mulher a fazer opções que cedo me arrependi mas a si devo  a beleza-da-contemplação-a-ilusão-do-devaneio-a-transgressão e todas as ilusões que coordenam as minhas aparências de mulher .se insisto em obstinações faço-o a fim de reavê-lo em cada obra
esteio de selagens e princípios





podia escrever muito mais






consuelo arantes






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não sei que grito é este que me caustica os ouvidos .in.temporais são os gestos que me levam ao res.guardo do silêncio .sempre o silêncio ou a única linguagem que me é permitida e em que me quedo presa a um sorriso .é por isso que tento preservar a linguagem que entendíamos quando soltávamos as gargalhadas como apêndices de comunicação .penso em ti .amanhã tenho um encontro marcado com a poesia - lembras-te? - aquela coisa maluca que respeitavas porque era minha amiga e com a qual insistia em surpreender-te .agora em que penso?
em alguém que não teve o direito de retribuir o até logo e na única passagem que lhe foi (con)sentida esvaziou-se de todas as in.certezas para 
numa madrugada de Agosto legar-me a sempre-noite





de todas as presenças faltam-me as flores azuis






consuelo arantes






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todos os dias os meus olhos debruçavam-se sobre a casa o jardim e o caramanchão de flores azuis .era através delas que os meus projectos ganhavam forma ou se identificavam com a imagética do meu bizarro quotidiano .ontem cortaram o caramanchão .hoje despertei sem os ditames das flores azuis .apenas ferros e alguns troncos enrolam-se no meu ângulo de visão .falta-me o meu caramanchão azul .sei que nunca soube o nome dessas flores mas tinha-as .azuis .e eu todos os dias ao abrir as portadas cumprimentava-as e elas respondiam-me resguardadas no mistério de Ser-flor ao som das alegorias e
dos acordes do Magnificat de Bach





sê breve .só a poesia me interessa






consuelo arantes






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a sala está vazia .nela cabe o mundo dos embustes que se fixam como aquela árvore que sob a arcada guarda o teu nome .quando te chamo é um pássaro que responde – sabes que tens nome de pássaro? - e quando me tocas não sei se és água-fruto-pássaro ou o rasgo que imagino a atravessar-me .fixo-me no ruído dos passos e quando a noite nos cobre procuro enquadrar-te nos rendilhados de um poeta-maior .deitados sob as estrelas nada mais ouvimos senão o rumor das asas dos insectos em volta de uma lâmpada ou o canto que nos orienta
na diversão dos nossos corpos-palpáveis





projecto a azul a prosa dos meus versos






consuelo arantes






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hoje é sexta-feira dia que dedico à plantação e aos encontros fugazes .gosto de imaginar o pássaro como o fruto da árvore e gosto de não perder tempo com conversas moles .porque hoje é sexta-feira devo esperá-lo meu amigo .deverei ser gentil oferecer-lhe uma chávena de café se vier após o almoço ou uma chávena de chá inglês se a sua visita rondar as cinco da tarde .não irei ceder aos seus caprichos de menino-homem-velho-mimado .que quer? preciso do meu tempo para lavrar o campo onde irei plantar os meus desalinhos mas porque é sexta-feira ceder-lhe-ei alguns instantes para falarmos como nos tornámos reflexos da destruição .hoje é sexta-feira .as crianças dormem .a porta do quarto está fechada e eu descalça e sentada no chão do corredor conto pelos dedos dos pés as horas que faltam para chegar a Poesia .lamento meu amigo se sou in.correcta mas
o meu tempo-é-de-menos e o mais-que-faço-de pouco-vale





o aceno dos deuses






consuelo arantes






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soube-se um número .um número ímpar porque os pares confundiam-no desde o dia em que nasceu .em que por esquecimento alguém deixou um punhal de ideias nas algibeiras dos babygrows com que a mãe o vestia .passou a partir de então a sentir-se um bébé-bomba e as utopias crescendo com ele levaram-no a imaginar-se membro de uma célula-terrorista .a pouco e pouco o desejo assassino de apunhalar a verdade de riscá-la de todos os manuais começou a dominá-lo e qual animal-predador o instinto foi sendo aguçado com o crescimento .enquanto adolescente iniciou-se na perseguição dos mitos e ao relembrar o intervalo do vento afivelou a máscara esquálida da fragilidade .quando homem tendo por companhia diurna e nocturna deus e o demónio ousou  as trevas e o silêncio
fez-se Poeta





viagem no quadrado do tempo






consuelo arantes






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que importa meu amigo se o mundo é redondo ou quadrado? se gira à volta do sol ou se é este que gira à volta daquele? no mundo dos afectos a direcção para a qual nos movemos é um factor de somenos importância .ninguém entende a linguagem dos Amantes res.guardados por círculos que vão rasgando segundo o andamento .dizem meu amigo que as distâncias se encurtam e que após uma primeira fase os corpos contagiados pela paixão aborrecem-se de tudo e anseiam por partidas onde as chegadas são meros-lugares de serventia .há quem mergulhe na noite preso ao horror do acordar e se solte ao som de um violino .os corpos têm-se em contraste e finda a seca apodrecem sobre as águas paradas de um rio


é tempo meu amigo de pela mão de Raúl Perez ou Mário Cesariny tatuar o delírio no núcleo do cometa Halley





alienação global






consuelo arantes






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do Gabinete de Imprensa e Relações Públicas de Sua Excelência o Ministro da Agricultura Florestas e não sei quantas mais pastas com urgente pedido de divulgação recebemos o seguinte comunicado:

uma árvore anã  comum.mente conhecida por bonsai fruto da união entre um jacarandá híbrido e uma magnólia andrógena acabou de dar à luz um par de sequóias .informa-se - familiares amigos e população em geral - que mãe e filhos se encontram de perfeita saúde e que muito em breve deverão abandonar os cuidados intensivos

fonte igua.lmente próxima e seguríssima confirmou-nos que uma praga de vorazes-parasitas também conhecidos por papparazzi deverá estar a postos para uma primeira entrevista na residência oficial do casal quando do retorno a casa dos respectivos rebentos
aguardam-se a todo o momento os subsequentes desenvolvimentos desta notícia de primeira página




nota da redacção - falta averiguar a natureza do vírus que destruiu o disco rígido - vulgus mente - da autora deste comunicado





acendem-se velas no teatro do absurdo






consuelo arantes






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nascidas a.críticas certas personagens apressam-se a sublinhar a ignomínia .a vesti-la com o que de mais superficial adquirem como se o plágio passasse a ser a matéria-prima admitida pelas Musas .estas prontas para o festim soltam-se .um arco de luz suspende-se e o eclipse dos astros é o início de novos-dias-de-má-memória enquanto as ditas personagens deixam-se embalar pelo ilusório .é fácil enganar o alheio quando se têm muito aquém do sublime .esquecem-se que se encontram num palco onde dia a dia há quem encene modelos cada vez mais inovadores no que respeita à dramaturgia humana

curiosa esta concepção guardada em memória e capaz de preservar a fantasia do Alter-Ego!!!!!!!

mas porque prisioneiras dos alísios nada as impede de trocar a própria personapela do vizinho assumindo a máscara-grega para no cúmulo da desfaçatez
tecerem despeitosos augúrios a quem tomam por original





a minha intenção é escrever-lhe






consuelo arantes






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lento o meu corpo alonga-se como se o mesmo fosse o princípio da estrada que me conduz à loucura .diga-me meu amigo - se souber - porque hesito entre um teclar uniforme e o segredo que me confiaram? serei o epicentro da dúvida ou ter-me-ei no olvido dos homens que abrem as portas ao pôr-do-sol? se hesita em responder-me é porque me sabe uma quietude acri-doce havida na haste da mente .vejo-me obrigada a interromper as nossas epístolas para deitar-me sobre uma agra de papoilas a fim de despontar para a realidade ou orientar os meus passos para o rumor das falas que se prolongam noite a-dentro
acaso na resposta pode enviar-me um retalho de momice?





as árvores estremecem pelo canto das aves*






consuelo arantes






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um golpe de vento .um golpe de asa .um chilrido de pássaro .um gorjeio .um rictusbanal .um parênteses .uma pausa de mão dada com a cegueira .um persistente descuido que se alapa a uma palavra porque entre ambos há uma ténue linha de separação .rendo-me à sinfonia in.acabada que vou procurando ritmar porque apercebo-me da curva como limite do extravio .resisto .apago .o ritmo da escrita acelera-se e prendo-me ao resquício de uma tarde onde me quedei .um novo arvorar avassala-me .não sei se é lago-árvore-barco-ou-rua  .sei que me tenho a ver o-rio-e-a-margem enquanto no brilho de todos os olhos me prendo
à asa do pássaro a caminho da fonte







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*verso do poema "Quinta Canção" ,de Fernando Guedes





é preciso lançar de novo as amarras






consuelo arantes






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um dia meu amigo
quando a ternura for a única linguagem existente entre nós talvez seja possível tornar compreensível o amor .não aquele que se veste de faz de conta de agradar ao outro de hesitações ou até mesmo de simulacros .as máscaras tendem a cair e quando tal acontece talvez seja demasiado tarde para voltar atrás
quando face à nossa in.segurança não somos capazes de usar a própria pele e utilizamos a alheia o domínio-passa-a-não-domínio .a senhora-de passa a senhora-de-nada e nada é pior do que o vazio com que dia a dia nos alimentamos
quando a beleza se mostra crua porque aos in.variáveis meses se somam os anos a única regra passa a ser o diálogo lúcido que deixámos interrompido
um dia meu amigo
quando o a.deus for a linguagem do tempo talvez seja possível re.aprender o amor
o tempo do Eu absoluto já era





cabeça//arquivo






consuelo arantes






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a partir deste momento começarei a escrever na diagonal com o palavrório ao centro e as imagens à direita .a esquerda reservá-la-ei para colocar a cabeça//arquivo à qual recorrerei para fabular .as mulheres lembrar-se-ão de falar muito devagar sobre a decoração dos textos a educação dos verbos e as in.fidelidades dos parágrafos enquanto os homens colocar-me-ão inúmeras perguntas que ficarão sem resposta dado o desgaste da imaginação .finjo que há uma ponte - os braços - entre a cabeça que coloquei à esquerda e as palavras ao centro e sob ela um rio navegável .há um vendaval que se avizinha da porta entre-aberta da minha boca e eu encostada à chuva
busco um ermo para descansar as mãos





morada de silêncios






anny maddock






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se lhe disser meu amigo - desisto - sei que não acredita

vontade não me falta .vence-me o cansaço de uma correria que me conduz a nenhures .o estar fora do círculo porque deixou de ser homocêntrico .o corpo re.veste-se de asco que escorre como baba-mal-cheirosa .a água passa-lhe ao largo sem lhe tocar .detém-se no tubo de ensaio onde se guardam as novas-fórmulas .os alapados em experiências-alheias começam a meter-me nojo
.desistir será o mais fácil .se o fizer liberto-me
que me resta meu amigo?
os olhos que se prendem às folhas de uma árvore .uma minúscula flor-azul que sobressai no verde como mancha .é nela que o meu olhar se fixa e a pouco e pouco começo a perder a noção do corpo
sob os escombros - meu amigo - há sempre uma flor-azul





sacra sabedoria






anny maddock






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sabes de que cor são os meus-olhos-a-minha-boca-a-vontade-de-te-escrever-no-mar?
sabes como se escreve a palavra-vida quando o poeta das cores inventa o verbo a-mar?
sabes a doçura do beijo cerzido com imaginação?
sabes a cor da Ausência?
e sabes que Fernando Pessoa dizia que o poeta é um fingidor?
sei que sabes
que ele finge porque ama .que se circunscreve à pedra de raízes brancas e acorda para se entregar ao mar .ao seu mar .de a-mar poeta .ausente no olhar que semeia imagens como corpos abertos ao devir