a dança das palavras




havia tentado que o voo dos pássaros lhe trouxesse a paz .o tempo havia passado e deixado as suas visíveis marcas .inventava sorrisos e gargalhadas com que pintava quadros que eram os seus diários e as lágrimas escondiam-se por detrás da gargalhada roubada ao palhaço pobre .nunca havia gostado da figura do palhaço rico .achava-o burlesco tão enfadonho no seu ar empertigado tão sem graça tão inútil
a imagem perpassava-lhe a ruga que tentava esconder dos outros mas que sentia vincada na pele
eram páginas da sua história .a quem interessava a sua história?
a borracha apagava a lágrima .não queria sentir-se triste .mas sentia-se .sentia-se senhora de um tempo que não queria que nunca havia desejado que inexoravel mente a perseguia .pendular .tempo de pretéritos como havia escrito Proust
no vaguear dolente das suas memórias
procurava ser feliz mas não podia mascarar a alegria no sorriso que escrevia diaria mente com todos os que não se queriam vencidos .a vida voltava todas as manhãs quando o frio a obrigava a recolher-se e alguém a chamava no tempo dos abraços e beijos partilhados
então o tempo pesava-lhe denso,quanto a manhã em que havia sentido a necessidade de se saber .o exercício iria ser difícil .acabaria por perder-se nos meandros do labirinto dos amantes que haviam deixado o navio por outros astros
o astrolábio da vida havia sido o instrumento que nunca soubera manusear e por isso havia perdido a face colada a faces quando esquecera a estrada principal .via-se sem retrocesso no beco em que como louca mergulhara .as mãos continuavam a tactear e as paredes que encontrava eram as memórias coladas a fita cola
de propósito havia esquecido a linguagem dos mortais .a caixa havia-se aberto e o cheiro a enxofre corria-lhe pelas mãos exorcizadas pelas perdas
no poker nunca havia sabido o valor do "fullen" de reis .ficara-se pela sequência de ases
gostava do branco quando as demais cores a atraiçoavam .o branco lembrava-lhe os palhaços .o palhaço rico .nunca havia gostado da sua cara pintada de branco mas gostava do branco porque era no branco que revia as suas gargalhadas
nada havia sido deixado ao acaso e o Velho do Restelo voltava ao seu encontro .haviam acordado a data há muito tempo na era das caravelas quando entregue aos seus sonhos de menina percorrera o mundo da fantasia
envelhecia e não gostava da velhice
as mãos tocavam outras mãos e iam tacteando rostos que se desfaziam no tempo das marés altas .esquecera-se que um dia também ela havia sido uma maré viva .mas a vida corria ao redor da morte .havia entre ambas um compromisso que não conseguia aceitar que não desejava aceitar que não queria aceitar .nunca haveria de perceber a morte até porque ninguém nasce para morrer .nasce-se para viver e a morte é um estúpido acidente vascular
voltava ao tempo do não .preferia não pensar deixar as imagens deslizar dia após dia como se a viagem fosse uma das muitas que havia programado e feito .o avião era a recordação viva dos lugares onde estivera em duplicado e via-se como se mais ninguém estivesse no outro lado da tela
havia aprendido o silêncio desenhado o silêncio deixado que o silêncio a percorresse de alto a baixo e a reduzisse à ínfima instância
o pó

nota de rodapé - mais uma vez a dança das palavras havia-a fascinado .não havia sido capaz de resistir ao ritmo imposto pelo texto .rendera-se porque tinha consciência que na escrita era cem por cento dependente da palavra