três compassos de espera





ao JC



era difícil aceitar o sentimento de culpa .não sabia porque nunca havia estreitado as suas relações com o pai .agora que o sabia às portas da morte era necessário inverter todo o processo
mas ainda iria a tempo?
e o pai compreenderia neste seu patético final que a ruptura não havia partido dele?
onde se aplicava o complemento directo?

ambos sabiam que o entendimento fora um compromisso adiado

não percebia o significado do seu lugar entre os outros e os outros jamais conseguiriam abarcar o universo dos seus desejos .queria apenas respirar .havia deixado atrás de si a omissão .não sabia onde se havia perdido nem quando .aliás isso pouco importava .sabia-se no ponto em que a tempestade obrigava-o a parar
em que direcção havia deixado o norte?

o pai não o havia ensinado ...
o que havia aprendido com o pai?
vasculhava o labirinto do cérebro encostado à porta do desentendimento
havia algo que o fazia considerar .também ele era pai .o papel havia-se invertido .haviam terminado as suas exigências de filho para dar lugar às exigências dos seus filhos e finalmente compreendia

quedava-se silenciosa no canto da sala e deixava-se guiar pelos sentidos .perdia-se na confusão do pensar quando olhava as caras adormecidas -
as pessoas adormecidas são bizarras ,bocas abertas ,olhos fechados .respirações compassadas ,ritmos mais lentos ,os rostos retorcidos ou inclinados para a direita ou para a esquerda ,bocas abertas e roncos -
apercebendo-se da falibilidade do ser .a previsibilidade na imprevisibilidade tornava-a cativa de si .não queria pensar e deixava-se fluir no torvelinho que inventava

onde iria terminar o jogo?
o que haveria para além de ...

qual náufrago gostaria de agarrar-se a certezas que não possuía .ninguém o acompanharia quando partisse .fá-lo-ia sozinho e isso assustava-o porque sabia-a já demasiado próxima .tudo passara a uma questão de tempo e de resistência .sabia-se o marinheiro de água doce que nunca havia aportado e que nunca havia embarcado .os sonhos deixara-os algures numa fundição
alguma vez havia tido tempo para sonhar?
tinha começado a trabalhar aos 11 anos quando o pai fora preso .vendia jornais e sonhos ... era o “puto” mais velho ... havia mais quatro ... e a mãe ... diziam-no malquerente .fizera-se por necessidade um homem prático

revia-se como mulher de operário sabendo à partida que não seria esse o futuro dos seus filhos .nem dos seus netos .condição melhor ficava entre as suas mãos quando debruçada sobre panelas sonhava a vida que nunca fora sua .e os filhos iam crescendo na busca de outros horizontes perfilhados nas vivências que tinham em outras casas .não .não eram as casas dela porque ela sempre vivera em casa alheia .mas os sonhos eram seus e as ambições eram suas .haveria de agarrar a lua

a casa fechada era o trunfo que nunca havia jogado .habituara-se ao silêncio e então bebia-o .fazia-o não para esquecer mas para recordar o que nunca havia sido .nunca se havia realizado como homem agora no limite de si entregava-se ao que restava do compromisso assumido .a vida .todos os que o tinham de uma maneira ou de outra omitido desfilavam sorrindo ou de mão dada na sua frente e via-os por antecipação atrás do seu féretro em lacrimosa hipocrisia