divagações




“estamos sós com aquilo que amamos” – Friedrich Novalis.

I -

faz-se um enorme silêncio .a chuva cai .sopra o vento .divagamos
.sabemo-nos presos a um corpo presos à matéria e recusamos aceitar ser esse o local da nossa morte .um corpo nada mais é do que um fim que se elabora num erro .então podemos aspirar aos objectos que tenham o estatuto de pensamento .mas também neste caso os objectos são insuportáveis na medida em que o corpo como criador do pensamento também é insuportável. e é esta deficiência técnica que para os cépticos como eu faz surgir o medo da morte
.mas tudo isto é um erro .um erro crasso
.primeiro porque na dicotomia objecto/corpo objecto/pensamento há apenas uma verdade insofismável – cada um, ao nascer ,transporta em si um cadáver
.segundo porque há que aprender os limites da ideia .há que saber os limites da linguagem .há que saber ser nos limites da linguagem e da matéria .calcular a distância entre a matéria e o pensamento entre a vontade perceptiva e o estado real do objecto porque a mesma pode resultar da fuga do objecto. este deixa de ser para querer ser
.então os objectos podem deixar de existir .existe a vontade do objecto que especifica a ausência e esta é a forma de consciencializar uma afeição
.todavia a falta do objecto nunca nos faz aproximar dele porque realmente o que amamos é a ausência a esperança do objecto .“estamos sós com aquilo que amamos” – escreveu Fiedrich Novalis.
.julgo imperioso cultivar o espaço bruto se quisermos de facto escrever o Poema final
.deambulamos num espaço vazio no espaço que fica entre corpos e ideias nomes e/ou objectos
.mas como preencher esse vazio?
o Poeta por exemplo sobe as montanhas e entre o dia e a noite julga-se um vagamundo sem saber que nunca sai do mesmo lugar .deseja ser um grito .ter asas .mergulha a fronte nas mãos .deixa cair o corpo .sonha .procura uma flor azul .sabe da escuridão e do frio que enchem o vazio
.sabe que se cumpre na Ausência.

II-

é o vigésimo segundo dia do mês de Janeiro .“esse ponto exacto à volta do qual tudo oscila ,testemunha do balanço entre a noite de um inverno exterior e a aurora de uma primavera interior
.acho que se adapta muito bem a ambiguidade do 22º dia do ano .não é já Inverno .ainda não chegou a Primavera .mas quer o Inverno quer a Primavera não chegam .eles não. nós sim! nós chegamos a um lugar .a um lugar onde ficamos .onde vamos ficando por vezes como o lento entardecer do verão .algo porém se desvanece no espírito dos dias no sedentarismo crepuscular do Outono
.reiniciados os ritos os projectos as actividades e as acções – quantas vezes repetidas? – do ano anterior apetece-nos agora deixar estender-se sobre o nosso corpo a evocação da Poesia com um fulgor ir-repetível
.e a Poesia acontece
.pelo menos a nossa poesia  porque não são os poemas a forma material e definitiva da poesia
.“a poesia, a beleza, a felicidade – como dizia Borges - é frequente. não há poeta, por muito medíocre que seja, que não tenha escrito o melhor verso de literatura
.quantas vezes não temos sido admiravel mente surpreendidos pelo brilho ou estranheza de uma frase de uma palavra ou dum fragmento lidos em textos ocasionais?
não há que procurar a Poesia .antes estar desperto para o seu inesperado acontecer
.todavia e apesar de tudo – permitam-me, agora, o uso da 1ª pessoa – gosto de imaginar o escritor ( disperso leitor ) organizando a substância das palavras no destino dos corpos enredando narrativas e coincidências na história dos textos
.não se atrevam a dizer que escrever é tão só uma forma de falar em segredo entre o Mim e o Eu .não acredito .ninguém escreve para guardar um texto na gaveta e mesmo ao fazê-lo mais não faz do que aguardar .o quê? quem?
alguém e/ou todos
.escreve-se para se ser lido porque mesmo o excesso do que se escreve é sempre um inacabado texto