ser no feminino




o mar em foz de rio .o mar .não havia resistido à necessidade de reencontrar o mar .como sempre lhe acontecia sem saber porquê .havia dias em que acordava e precisava de estar junto ao mar .do mar que constituía o seu ponto de partida e chegada .costumava sentar-se na rocha e ficar a olhar o mar .o infinito era o limite dos seus pensamentos .olhava o céu e redescobria-se em azul .o mar então devolvia-lhe imagens de calmaria .inventava a partida e o mar respondia-lhe em chegada

recolhia-se ao silêncio .a única voz era a do batimento do coração em ritmo pendular com o rebentar da onda .o céu escurecia .volvia o coração em mar e este respondia-lhe em batimento de rocha .elevava a imaginação e o mar estendia-lhe uma nova onda

o branco da espuma contraposto ao cinzento da nuvem .tentava preencher-se com as palavras que queria escritas no mar .eram palavras irreverentes .reinventadas na onda seguinte e na seguinte remetidas ao silêncio .nunca tinha percebido que o silêncio não tinha a ver com os outros mas consigo .ela era o silêncio

sentia-se mar dentro .havia descido até ao ponto de encontro .a água passara a ser mais um elemento que precisava .como o ar .respirou fundo .deitou a cabeça para trás e fechou os olhos .o mar deixou de estar à sua frente .estava dentro dela .saltava-lhe das mãos para os braços destes para a barriga da barriga para as pernas e quedava-se nos pés .havia sido preciso estabelecer aquele caudal para se sentir de novo .era o princípio do nada .a certeza absoluta que tudo se iniciava e terminava ali .dentro dela .tudo se havia transformado em água .o oceano imenso

pensar no feminino .estar no feminino .ser o feminino ao alcance da mão .da sua mão .havia tecido uma rota agora ao inverso .os rios correm para o mar .ela corria do mar para o rio .o mar constituía o seu porto de abrigo .o rio uma outra aventura .iria vivê-la .sabia-o .sabia-se ao olhar para dentro .afinal o que havia dentro de si? uma confusão de veias e artérias que conduziam a nenhures .também não queria sair dali .voltaria uma outra vez .e outra .e ainda outra .o apelo era o mesmo .o irreversível desejo de partir e de ficar .ligada ao braço de mar que ainda não era rio .ou ao rio que ainda não se chamava mar .estava serena .há tanto tempo que não se sentia assim .sem importância .tudo passava a relativo

sentiu um desejo irresistível de ser .o sorriso do outro .a gargalhada do outro .o rio do outro .e correu .não havia limite para o seu corre-corre .descalça .era assim que se queria .descalça .sabia-se a respirar mar .a viver rio .a ser rio .e riu .riu .rio