robots de mim




sentei-me com uma chávena de café ao lado do computador .liguei-o .as ideias entraram em turbilhão .as palavras amarraram-se como comandantes da escrita
a casa está em silêncio .bocejo entregue aos sonhos e pesadelos que visitaram as flores da minha memória .estou descalça .sinto os pés acompanharem o chão da casa inventada por mim .desconheço-me .assim como desconheço as razões da minha razão .começo o jogo

quero-me entre as fendas da parede como se as palavras preenchessem esta solidão redonda e animal que tenta exprimir-se .chega ou desaparece quando tento visioná-la no écran .a sua presença retira-se quase em sucedâneo para uma ausência inexplicável .qual o sentido que tento? questiono-me se acaso há sentido ou se procuro algum sentido naquilo que escrevo .porque tudo tem de obedecer a uma ordem .cósmica .a norma da língua .nada deixado ao acaso .a previsibilidade como palavra principal .é aqui que começo .o princípio lógico .mas desde quando há lógica nos pensamentos que encontro dentro da minha cabeça? deixo-os soltos .apercebo-me que existo porque sinto .porque me emociono .não porque penso .esse foi o enorme erro de Descartes .deixo-o no seu tempo .caminho para um outro tempo em que as emoções coordenam o tecnicismo do meu pensamento .sou ... o quê? esta sensação fria de que algo não está bem .apercebo-me que me dói o dedo com que martelo as teclas .percepciono a dor

esta passa a ser a relação que me prende à palavra .à escrita .mas afinal porque escrevo? porque me dói o dedo .apercebo-me da relação que existe entre a dor e o existir .entro mais uma vez no sistema quaternário da minha mente .recapitulo que nem o existencialismo humanista de Sartre pode imaginar a dor fora do sujeito mas sim na sua génese .é a sua consciência absoluta .mais uma vez as palavras comandam-me .disserto através de sistemas filosóficos como se fosse essa a minha necessidade de comunicar .faço marcha atrás .agora sou eu a comandar as palavras .um enorme écran branco projecta-se na minha frente .garatujo a in-inteligência do Ser como se tal fosse possível .o vazio .a ausência do pensamento .da emoção .uma branca

levanto-me .coloco a chávena de café no lava-loiça .espreguiço-me .verifico que até este movimento é telecomandado .nada existe sem mim .nada existe para além de mim .a realidade que vislumbro é uma criação minha .tenho olhos castanhos .vejo as coisas em tons de castanho .negativo .a cor da minha íris nada tem a ver com o cristalino .disserto sobre o facto da minha realidade ser diferente da dos outros .ninguém vive a mesma realidade mas em mundos paralelos .para quê a discussão ?nunca chegaremos ao lugar comum porque este não existe .não existe .ponto final

saio .apercebo-me que os meus passos são diferentes do homem que atravessa a rua em sentido contrário .sei que sou um narrador singular .um beijo ou uma carícia são projecções de mim .existem porque eu existo .porque os tenho dentro de mim

delírio absoluto do absoluto irreversível da vida .as flores não são flores .são projecções de imagens .mas imagens de quê? de flores .como funciona a minha mente como espelho reflector? nada existe no nada .apenas o nada .como se constrói então a ideia da flor? essência/projectada ou ser/existência? ela existe .a flor .daí as suas variedades .as espécies .regresso ao ponto zero .verifico que tudo gravita à minha volta .eu sou o centro do meu mundo .irreal ou não a realidade existe fora de mim .dentro de mim apenas projecções do real .o écran preenche-se de palavras amontoadas sem sentido .dou-lhes uma ordem .elas rodopiam .colocam-se no sentido preciso .afinal não são as palavras que me comandam .são robots de mim .e nunca será de outra maneira