recebeu o troco
e levantou-se lentamente tão lentamente quanto lhe era possível a fim de retardar o seu regresso ao calor da rua
não é que lá fora estivesse melhor antes a inércia de mudar de posição e a incerteza do tempo de espera
acendeu um cigarro começou a descer a rua enquanto as pessoas à sua volta obrigavam-no a pequenos desvios ávidas da rotina do dia a dia
não tinha porém importância porque ele descia expectante e só por isso achava graça a essa fúria formigal que levava os outros a chocarem consigo cheios dessa importância de correr para o tédio que sabia domesticamente enfadonho
a praça estava cheia parou em frente aos isqueiros - os mesmos de sempre que há anos se mantinham na mesma montra - olhou os títulos dos jornais verificou que na esquina da loja de modas ainda lá estava a camisa que gostaria de comprar seguiu em frente parando em cada montra cumprindo o ritual de ver o já visto deleitando-se na confeitaria dos primeiros anos do séc XX - nos bolos e na montra - olhando as armas que nunca pensaria usar vendo de soslaio o imobilismo de alguns comerciantes virou à direita e subiu mais uma vez a rua de desesperantes esperas e desesperas das escadinhas à esquerda saiu a miúda hesitou em dar-lhe a importância do costume mas o estado de alma permitiu-lhe um outro olhar valeu a pena as sandálias gastas as pernas soberbas - bem feitas - mesmo bem feitas - aliás todo o corpo era bem feito não necessitando da saia apertada nos sítios errados ajustou o seu passo ao dela e sorriu à mudança de ritmo de andamento depois passaram a trocar os olhares nas montras e entre a brincadeira e no jogo de acelera e trava de montra-descarada-montra-impessoal foi-lhe descortinando o rosto de menina que não teve tempo de brincar as rugas que lhe haviam chegado o peito que terminava num estômago apertado por um cinto
pararam no largo olharam-se n OLÁ-OLÁ e aquele longo olhar contou todas as histórias as contáveis e as outras despediram-se como amigos
o calor continuava em todos os lados mesmo estando à sombra e sendo 19h30
começou a descida para casa
é notável como a cidade pode oferecer o passeio conforme as necessidades
se tivesse seguido a rua dos eléctricos além de já ter chegado há muito tempo não teria sido crítico de arte nem teria pena da amiga que arranjara pior tinha-se impacientado com a espera
subiu ao nono andar a casa estava naturalmente fresca e foi bom abrir as janelas para deixar entrar o sol e o rio
luz água silêncio
acendeu um cigarro e correu para o duche
deixou a água correr n ao longo do corpo primeiro sem ordem n depois em escolha metódica curva a curva dos pés à cabeça que inclinou em ângulo certo de modo a incidir no pescoço no peito no estômago nas ancas nos pés de novo a repetição dos jogos de água e os sentidos que se apuram
esqueceu a passagem do tempo mas não a suficiente para precisar de um pouco de música agarrou a toalha e serviu-se de wiskhy estendeu a mão tirou o 3º andamento 5ª sinfonia de Mälher e deixou-se ficar quieto oitava acima garganta a baixo
brincava com os dedos e com o copo quando o telefone tocou
o ciclo fechava-se e ele viu sentada a seu lado a imagem que guardara o dia inteiro
chegava de modo breve e seguro com aquele sorriso nos olhos que dizia ser bom amar
atendeu naquele estender de mão cingir de corpos - curiosamente mesmo nos mais íntimos encontros mesmo nesses nunca haviam assumido qualquer compromisso - e no falar das generalidades diárias
era bom ouvi-la
mesmo quando não tinham coisas novas para dizer ficavam a recordar os instantes de ontem só pelo prazer de estarem juntos
era noite escura quando se despediram
desligou o telefone levantou-se vestiu-se comeu qualquer coisa e saiu
Ana esperava-o a rotina o dia a dia o tedio doméstico