deliberada.mente





alexander dolgikh




*
olho o vagamundo do outro lado da rua e tenho pena
não dele
mas de mim
sentado no chão tem o absoluto do nada
e eu?
rebelo-me na serventia de tudo
*
olho a cigana do outro lado do passeio e
in.vejo as palavras com que tece
nas mãos
ilusões
tenho-me presa ao presente em
que o nada se compraz no absurdo das intenções
a cabeça reserva-me a dúvida
o cansaço das estórias recriadas e repisadas
onde ninguém tem o direito de Ser
tudo é compurgado ao ínfimo pormenor
em nome do bom nome
*
míseros ímpios feitos em deuses

*
-senhora ,o vinho corre!
deixá-lo correr
alguém perguntou porquê?
o bêbado bebe
na solidão de si se for o caso
ou talvez não e por
que não?

*
o vagamundo olha-me e
estende a mão a que a cigana revestiu de cacos
deixo-lhe um sorriso na mão estendida e
agarro a imensidão de um olhar que
não ouso
não sei colar os cacos que a cigana
forjou

*
não

*
o não é a palavra proscrita no sim de uma vida
onde não tenho o direito de viver
*
perseguem-me os fantasmas da escrita e
a maledicência transfere o golpe mortal
choro o animal ferido e
rio-me do pontapé que dei ao meu irmão
de raça
alimento-me dos ossos e
das peles que devoro
*
sou a predadora submersa nas ladaínhas de
bem-querer
não quero nada
prefiro o salto do vagabundo que
me agarra a mão para que o siga e
vou ao encontro da cigana
*
sou
sapato
gato
rato
*
a ínfima parcela de um choro que não choro
de uma gargalhada que não dou
sou o que quiser
coloco a cabeça entre as mãos
aperto-a e prefiro não me deter em nada
não ouço mais nada
*
não me venham com estórias de santos
prefiro a algazarra do demónio
nele encontro o absurdo do não ser
em perfeição

*
não magoa nem dói
*
matei a alegria
matei a cigana
matei o vagamundo
*
não percebi que ao fazê-lo
matava-me a mim
fiquei reduzida ao nada
in.feliz
no espaço que circunda o estar no meio de um conflito
odeio o bélico

*
NÃO

*
deixem-me entregue às minhas fantasias onde bebo
[ e porque não? ]
os néctares que me aprouver
quero-me na ausência
falsa do trio que desenhei
*
o vagamundo
a cigana e
eu
três marginais no destino
*
ainda bem
*
estava tão cansada de ser bem comportada
*
valorizo hoje
amanhã destruo a sobre.posição de valores
de comportamentos
de atitudes
é assim que manda a santa madre igreja
os anjos
os arcanjos
os santos
os demónios e
el-rei e senhor

*
bem comportada
sou muito bem comportada

*
respeito a cor
o silêncio
o absurdo
a redundância
*
tudo deixa ou começa a fazer sentido
ausento-me no cansaço
deixem-me
[ apenas ]
olhar o outro lado da rua
*
não vejo o vagamundo
terei sonhado?
a cigana sumiu
terei efabulado?
não me revejo
estarei acordada?

*
NÃO

*
é necessário que alguém vigie
os extra-terrestres acabam de ocupar
o centro da avenida
*
têm olhos redondos
nariz redondo
orelhas redondas
barriga redonda
a boca é afiada
ah! têm duas línguas
bífidas
como as serpentes que procuram o meio da estrada

cabeça erguida na morte
*
as cadeiras
aprumadas
continuam à espera que o espectáculo comece
os actores não comparecem
alguém inverteu os papéis

*
deliberada
mente